Como cheguei no livro

Duas fontes me recomendaram o livro Sociedade do Cansaço1. A primeira foi uma referência de uma palestra sobre saúde mental, proferida por um psicólogo. A segunda foi um reels do Instagram que listava livros para ler em um dia.

Pesquisei na Amazon e encontrei uma versão de bolso, relativamente barato. Só 128 páginas, sendo que 50 páginas são só de anexo. A expectativa: vou ler rápido, então vou passar na frente da minha fila de leitura. A realidade: demorei quase 3 meses para finalizar o livro.

Certo que a minha disciplina para leitura não está lá essas coisas. Mas, a leitura foi mais longa do que esperada pela complexidade. Confesso que estimo ter entendido algo em torno de 30% do conteúdo do livro e ainda assim valeu muito a pena!

Um brevíssimo e incompleto resumo

Sociedade do cansaço é um livro/ensaio publicado em 2017. O autor é Byung-Chul Han, um filósofo sul-coreano e professor na Universidade de Berlim. Logo no primeiro capítulo do livro, o autor vem apresentar uma primeira quebra de paradigma ao discutir a violência da positividade - o que ele coloca como sendo a raiz de “doenças neuronais” como a depressão, TDAH, síndrome de Burnout, entre outras.

O autor começa explicando que o paradigma imunológico não serve para essas “doenças neuronais”. O paradigma imunológico vai dizer que o que faz mal é o que vem de fora. A doença vem por algum fator externo ao ser, como um vírus, por exemplo. E a defesa/resposta desse paradigma imunológico é a negatividade. Só para você sentir um pouco do tom do livro:

"A dialética da negatividade é o traço fundamental da imunidade. O imunologicamente outro é o negativo, que penetra no próprio e procura negá-lo. Nessa negatividade do outro, o próprio sucumbe, quando não consegue, de seu lado, negar àquele."

Essa ideia fica mais clara ao perceber os mecanismos de defesa do nosso corpo para combater um vírus ou bactéria. Mas, os adoecimentos neuronais da contemporaneidade seriam explicados por um mecanismo contrário: um exagero de positividade.

"A violência não provém da negatividade, mas também da positividade, não apenas do outro ou do estranho, mas também do igual. Baudrillard aponta claramente para essa violência da positividade quando escreve sobre o igual: 'Quem vive do igual, também perece pelo igual'".

Byung-Cul Han faz questão de apoiar suas ideias em outros autores - embora em alguns capítulos ele apresente as ideias de outros autores para discordar delas. Além da linguagem do livro, outro problema que me dificultou o entendimento foi a falta de referência para entender algumas ideias. Simplesmente, minha ignorância não me permitiu compreender algumas coisas com profundidade. Confesso novamente que algumas partes do livro eu li, reli e desisti de tentar entender.

Depois de apresentar o conceito da violência da positividade e como ela se contrapõe à visão imunológica da negatividade, o autor vai apresentar o conceito chave do livro: a mudança de paradigma da sociedade da disciplina para a sociedade do desempenho.

Sobre aquilo que eu falei sobre as referências que o livro traz, a primeira frase do segundo capítulo é: “A sociedade disciplinar de Foucault…” - agora, como que faz se eu não tenho essa referência da sociedade disciplinar de Foucault? Esse é só um de muitos exemplos de como a minha ignorância atrapalhou o entendimento.

Mas, enfim, como eu afirmei anteriormente, dos aproximadamente 1/3 do livro que eu entendi, a sociedade disciplinar valoriza a obediência e é a sociedade do “não”. Não é difícil perceber que a sociedade disciplinar está vinculada à negatividade. Já a sociedade do desempenho não se opõe completamente à disciplina, mas a leva para outro nível, dado que só a disciplina não é suficiente para maximizar a produção. A sociedade do desempenho está vinculada à positividade, a positividade do poder.

“O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade do desempenho.”

“A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever.”

E aqui três passagens concatenadas de lugares diferentes do livro, mas que para mim resumem bem a ideia central:

"O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submente a nenhum trabalho compulsório. Suas máximas não são obediência, lei e cumprimento do dever, mas liberdade e boa vontade. Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer. Tampouco se trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a si mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim, ele se desvincula da negatividade das ordens do outro. Mas, essa liberdade do outro não só lhe proporciona emancipação e libertação. A dialética misteriosa da liberdade transforma essa liberdade em novas coações."
"A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade livre. Elas geram novas coerções. A dialética do senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrário a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou em um escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos."
"O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho".

Conclusões e reflexões

Sociedade do cansaço me fez pensar bastante e me desafiou para entender alguns fragmentos que já me satisfizeram. Um livro para revelar minha ignorância e alguns comportamentos. Não sei se vou ler novamente na íntegra, mas certamente vou revisitar algumas passagens, assim como o fiz para escrever essa resenha.

Sociedade do Cansaço é um daqueles livros que causa reflexões com potencial de mudar comportamentos. Vou tratar de duas situações recentes que me fizeram pensar.

Recentemente, estava fazendo uma viagem de família e no momento do check-in em um hotel estava com o celular conectado em uma reunião online. Tentando prestar atenção na reunião - inclusive participando ativamente em alguns momentos, ao mesmo tempo que preenchia o formulário do hotel e fornecia documentos para a recepcionista. Minha irmã do meu lado perguntou: “você está em uma reunião agora?”. Na hora eu lembrei da frase “cada um carrega consigo seu campo de trabalho”.

Outra situação foi quando ainda de férias precisei fazer uma pequena compra em um mercado. Coisa que em um dia corrido comum eu demoraria algo em torno de 15 minutos, fazendo todo deslocamento de carro. De férias e precisando fazer atividade física, resolvi ir andando. Andando demorei exatos 45 minutos para realizar as compras, a maior parte do tempo gasto no deslocamento a pé. Um tempo sem celular/telas, observando o pulsar das ruas, o relevo das calçadas, as nuvens de chuva no céu, o pingo da chuva pregressa ao passar embaixo das árvores. Mas, uma preocupação de chegar logo, de voltar logo, de ser produtivo. Na volta lembrei da composição de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira:

“Ai, ai, que bom

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié

Quem é rico anda em burrico

Quem é pobre anda a pé

Mas o pobre vê nas estrada

O orvaio beijando as flô

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cor

Vai moiando os pés no riacho

Que água fresca, nosso Senhor

Vai oiando coisa a grané

Coisas qui, pra mode vê

O cristão tem que andá a pé”

Gonzaga, Luiz; Teixeira, Humberto. Estrada de Canindé. 1950.

Outros trechos que chamaram minha atenção

"A técnica temporal e de atenção multitasking (multitarefa) não apresenta nenhum progresso civilizatório. A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em estado selvagem."
"Aprender a ver significa 'habituar o olho ao descanso, à paciência, ao deixar aproximar-se-de-si', isto é, capacitar o olho a uma atenção profunda e contemplativa, a um olhar demorado e lento."
"É uma ilusão acreditar que quanto mais ativos nos tornamos tanto mais livres seríamos."
"Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar".
  1. HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.